Pode-se compreender a ideia de democracia racial no Brasil como a crença de que as consequências negativas do período escravocrata brasileiro teriam sido superadas, não havendo mais racismo ou discriminação, ou então que esses possuem baixíssimas expressões. Compreende-se por vezes que, na verdade, uma vez analisada como um todo, a escravidão foi um processo muito mais positivo do que negativo, haja vista que propiciou diversos avanços econômicos. Ponderar sobre democracia racial no Brasil é observar de maneira crítica e interseccional os âmbitos, principalmente, de raça e classe, se estendendo também ao gênero.
É necessário o destaque das relações institucionais com os povos pretos recém saídos de um sistema legalmente escravocrata. Uma vez constatado que a abolição da escravatura era um ato necessário para, entre outras situações, a prevenção de quaisquer tipos de processos revoltosos vitoriosos, como aqueles haitianos, a elite brasileira – branca – resguarda seus interesses por vias legais pela extinção de direitos existentes até o momento: é retirado da Constituição, por exemplo, o direito à educação. Entende-se, então, uma pretensão de certa classe social – e racial – para a exclusão de povos pretos. Uma outra medida tomada foi a tentativa de homogeneização das culturas, que, na prática, seria a junção de interesses particulares de povos brancos, que detinham e detêm ainda hoje a maior força de expressão política e monetária no Brasil.
Imaginar o Estado brasileiro como um modelo de democracia racial é um ato desconexo da realidade presente. A desigualdade existente é estrutural e estruturante na sociedade, abarca os âmbitos social, racial, econômico e de gênero e molda as relações intersubjetivas e institucionais, contribuindo para a manutenção de um sistema de exclusão.
Vale salientar que as relações raciais no Brasil são amplamente estudadas hoje, a fim de uma maior compreensão do processo segregatório ocorrente. Entende-se hoje que, no Brasil, não foi possível a introdução de sistemas como o do Apartheid sul-africano ou das Leis Civis segregacionistas estadunidenses, visto o quantitativo populacional de povos pretos trazidos – traficados – para esse território. Assim sendo, qualquer forma de separação e de racismo agiria, antes de tudo, no imaginário da coletividade. Isso significa dizer que se implementa um estado psicológico de aversão aos corpos pretos, que viria a atuar desde a política de branqueamento, para erradicar a população preta, até a forma de lidar com os ditos mestiços.
É incompatível com a realidade social e racial a afirmação de que o Brasil é um modelo de democracia racial. Pode-se ir além: o Brasil é um Estado cuja sociedade é racista e, a menos que também parta do Estado uma política de antirracismo – da mesma maneira que a política racista foi e ainda é institucionalizada -, não há a possibilidade de se vislumbrar com certeza um porvir mais igualitário.
De acordo com pesquisa realizada pelo Conselho Nacional de Justiça, em 2018, apenas 2 em cada 10 juízes no Brasil são pretos – mais especificamente 18%. É impossível imaginar um cenário de igualdade em que a maioria da população brasileira é preta, mas em que os altos cargos do judiciário são compostos apenas por pessoas brancas. Atualmente, dos onze ministros que compõem o STF, onze são brancos.
As operações de forma desigual das instituições brasileiras, como o judiciário, evidenciam o racismo institucional. Esse conceito de racismo faz referência à atos de instituições públicas e privadas ou de seus representantes, sejam eles intencionais ou não, mas que afetam de forma negativa a população preta do Brasil. Operam dentro da normalidade do funcionamento de uma instituição, o que dificulta o reconhecimento do racismo que ali está presente. Uma medida tomada sem que sejam estudados os seus impactos nos diferentes grupos raciais é uma expressão do racismo institucional, além da negativa de ascensão profissional por causa da raça.
Ocorre que muito antes de ser negada a ascensão profissional, é negado o acesso à educação de qualidade e a uma boa qualidade de vida. Nesse sentido, de que forma o Estado pode proporcionar educação de qualidade e boa qualidade vida para a população preta uma vez que a enxerga como um grupo de pessoas subalternas e as trata de forma marginalizada?
É como se o Brasil, ainda hoje, fosse uma sociedade divida por estamentos. Pessoas negras terão acesso a escolas e a um sistema de educação inferiores àqueles ofertados à população branca, e os poucos que tiverem acesso a um mínimo de educação de qualidade e emancipadora, que tiverem acesso ao ensino superior – muitas vezes por meio da política de cotas – terão sua ascensão profissional interrompida ou dificultada pelo racismo.
A pesquisa do CNJ anteriormente citada, a qual demonstra que apenas 2 em cada 10 magistrados brasileiros são pretos, o fato do STF – instância máxima do judiciário brasileiro – ser composto unicamente por pessoas brancas, somados ao percentual de 1% de advogados pretos presentes em grandes escritórios, conforme levantamento do Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdade, de 2019, é um reflexo do racismo institucional e estrutural, os quais colocam as pessoas negras em níveis inferiores, negando o acesso a educação de qualidade e ascensão profissional. Esses dados, quando confrontados com dados do IBGE que apontam para aproximadamente 55% de pretos como parte da população do Brasil, explicitam que a forma negligente que o Estado trata a população preta, bem como as disparidades socioeconômicas que afetam muito mais esses indivíduos, contribuem para a perpetuação do modo estamental no qual a sociedade está dividida, desmentindo o mito da democracia racial no Brasil.
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